Meu nome é Lola Joseph Berissi e nasci em Alexandria, no Egito, na Maternidade do Hospital Israelita.
Minha mãe contou que sofreu com as dores de parto por muito tempo e como naquela época não se faziam cesarianas com tanta facilidade, o ginecologista havia dito que se eu não nascesse até às quatro horas da manhã, ela seria submetida a uma cesariana. Por incrível que pareça, nasci exatamente às quatro horas da manhã. Essa data foi lembrada e considerada muito bonita porque no hemisfério norte é o primeiro dia da primavera. Naquele tempo não havia ultrassom para saber o sexo do bebê, então meus pais não tinham ainda escolhido meu nome. Enquanto eles se decidiam, estava presente naquela hora uma amiga deles chamada Louli, que era muito bonita, morena e de olhos verdes. Como nasci com muitos cabelos pretos e, meu pai, assim como meu tio, tinha olhos esverdeados, decidiram chamar-me de Lola, também como homenagem à minha avó materna, Luna.
Diziam que eu teria muita sorte na vida por ter nascido no primeiro dia da primavera e também porque na saída da maternidade um primo rico veio nos buscar, inaugurando um lindo carro. Entre meu irmão mais velho e eu havia 14 anos de diferença. Tínhamos um irmão do meio, que era muito considerado pela sua inteligência, como se fosse o jovem Einstein, mas ele faleceu de repente em consequência de uma peritonite aguda. Meus pais raramente falavam desse irmão que eu não conheci. Para tentar fazer com que minha mãe mudasse um pouco de ares, e para evitar uma depressão, meu avô paterno convidou meus pais e meu irmão para uma viagem de navio para a Ilha de Rhodes, na Grécia. Foi no caminho ou em Rhodes mesmo que fui concebida. As lembranças que tenho dos meus pais são todas maravilhosas, eles eram incríveis. Da minha casa em Alexandria eu podia ver o mar, lembro-me de que sempre recebíamos muita gente, amigos e familiares. Éramos muito hospitaleiros.
Como única menina da casa, eu fui bem travessa. Lembro-me de um episódio que me foi contado várias vezes por diversos membros da família. Eu devia ter uns três anos quando meu avô paterno veio nos visitar em Alexandria. Ele era um “afandi”, que significa pessoa muito importante e respeitada. Não sei por que decidi virar todas as cadeiras da casa para que ninguém pudesse sentar. Como eu, um projeto de gente, podia enfrentar uma pessoa tão importante como o Sr. Salomon? Foi a primeira e única – que eu me lembre – surra que tomei na vida.
Houve outros episódios também. Desde criança sempre gostei muito de café, e como não achavam muito bom que uma criança o tomasse, eu inventei um prato. Pegava bolachas, cortava em pedacinhos e as cobria com café, açúcar e manteiga e, assim, “comia” o café. Meu tio, que morava no Cairo, vinha frequentemente nos visitar, especialmente no verão, por causa do mar. Ele costumava dizer que ninguém deveria falar comigo antes de eu tomar café, porque eu ficava de mau humor.
Duas coisas que aconteceram na minha família marcaram-me muito. As cicatrizes no rosto do meu pai, que tinha sido arranhado por um gato e, como não havia cirurgia plástica naquela época, ver o rosto dele naquele estado deixou-me com uma fobia de gatos, que eu tenho até os dias de hoje. E quando meu irmão foi atacado por um cachorro e, por causa do susto, por um bom tempo ele não conseguiu falar. Também não havia fonoaudiólogos e meus pais ficavam esperando um médico que vinha de tempos em tempos para ajudá-lo a se recuperar. Mais tarde ele melhorou, mas ainda gaguejava quando ficava nervoso. Esse trauma até que eu consegui superar um pouco, às vezes até gosto e brinco com cachorros.
Lembro-me de algo engraçado sobre as convenções que existiam na época da minha juventude. Nós, as moças, tínhamos uma idade certa para cada passo, por exemplo, entre 11 e 12 anos, podíamos usar meias curtas mais incrementadas. Depois, entre 13 e 14, um sapato com um salto de dois ou três centímetros, e a partir dos 14 e 15, podíamos usar meias de seda e um pouco de batom bem claro, assim como passar nas unhas um esmalte incolor. Antes eu achava tudo isso muito chato, mas agora vejo que era muito bom, porque assim esperávamos chegar à idade para as novidades, enquanto atualmente é bem diferente, e é por isso que os jovens querem sempre experimentar novidades não desejáveis.
Na verdade, creio que até mais ou menos os 12 anos eu era feliz e não sabia! Aos 15 (provavelmente essa não é uma idade muito exata, pois já faz muito tempo que tive 15 anos!) ou um pouco antes, meu sonho era terminar os estudos no colégio e, como sempre tive facilidade para aprender idiomas, desejava ir trabalhar na Suíça, na ONU (Organização das Nações Unidas) ou na OMS (Organização Mundial da Saúde). Queria morar lá porque é um país neutro, não há guerras, e a Suíça é o berço da diplomacia. Aquele era um sonho um pouco difícil de se realizar, pois naquela época poucas moças saíam sozinhas do país para estudar. No meu caso, como meu pai tinha perdido o seu dinheiro, eu também perdi o meu sonho. Esse tipo de estudo custa caro, assim como deixar a minha família. Havia duas Lolas, aquela criança tímida e medrosa e a outra, que queria realizar seu sonho na diplomacia, ou algo parecido.
Durante as guerras, na minha juventude, lembro-me de que logo que escurecia, havia o toque de recolher. Ficávamos dentro de casa com o mínimo de luzes acesas e as persianas forradas de papel preto ou azul marinho escuro, para não deixar transparecer qualquer luz – mesmo as das ruas eram apagadas para que os pilotos dos aviões inimigos não pudessem saber por onde voavam. Não havia os equipamentos sofisticados que existem hoje. Essa experiência de guerra marcou-me demais, tanto que não gosto de brigas bobas, de ver filmes de guerra, de ler livros sobre histórias verdadeiras ou não sobre guerras. Quando ouço trovões ou vejo relâmpagos, chego a sentir-me apavorada, pois me remetem a canhões e bombas.
Outra coisa que odeio são as revoluções populares pelas ruas, embora saiba que, às vezes, as reivindicações são necessárias. Nas guerras, direta ou indiretamente, todos sofrem. Aqueles que vão à frente de batalha morrem ou são machucados física, moral ou emocionalmente. Quando voltam para casa, se voltam, como é que podem esquecer o que viram, passaram, ouviram? Mesmo a parte que ganha a guerra, não a vence de mãos beijadas. E os pais, as esposas, os filhos que ficam aguardando com uma agonia sem tamanho a volta de seus entes queridos? Aqueles que vão para a guerra são geralmente jovens que ainda não aproveitaram, não viram nada da vida. Visitei o cemitério de Alamein, no Egito, e quase todos os túmulos eram de jovens entre 18 e 22 anos. Algo inesquecível e desolador para qualquer um. E as guerras de nervos feitas por pessoas que se julgam seres superiores, mas que no fundo, são simplesmente desequilibradas?
Nos anos em que morei no Egito presenciei, mesmo indiretamente, três guerras: o fim da Segunda Guerra Mundial, a Guerra de 1948 contra os judeus e, em 1956, a Guerra do Canal de Suez. Cada uma delas marcou-me de uma maneira, sendo que por causa da última, tive que sair da terra em que nasci – praticamente mandada embora. Mas graças à D’us, ao presidente do Brasil na época, Juscelino Kubitschek, e ao acolhedor povo brasileiro, fomos recebidos de braços abertos por este País.
O primeiro ensinamento de minha mãe quando chegamos a S. Paulo foi que eu não deveria fazer comparações entre o Egito e o Brasil. Talvez para que eu não sofresse ou fosse injusta em minhas impressões. Aquilo ficou bem gravado na minha memória, e foi seguindo seu conselho que eu me guiei.
Saímos do porto de Alexandria, minha mãe, meu irmão e eu, pois meu pai havia falecido. Fomos para Gênova, na Itália, de onde pegamos o navio que iria primeiro para o Rio de Janeiro e em seguida ao porto de Santos, nosso destino final rumo a S. Paulo. Lembro-me de que em nossos últimos dias no navio, antes de chegarmos, comemos demais, inclusive muitas frutas, pois tudo era incerto e não sabíamos se encontraríamos comida em nossa chegada ao Brasil. Não sabíamos como seriam nossos primeiros dias por aqui.
No começo tudo foi muito duro; no primeiro emprego eu ganhava doze contos, tendo que pagar nove de aluguel, e meu irmão mais velho ficava com todas as outras despesas da casa. Morávamos com a minha mãe na Avenida Nove de Julho em uma espécie de flat, o Hotel Paris, onde os recém-chegados se hospedavam. Tive que aprender o português, e no início era o espanhol que me ajudava. Logo em seguida precisei adaptar-me em todos os sentidos. Saía cedo para trabalhar como secretária em empresas multinacionais e retornava tarde ao apartamento.
Devido àquelas circunstâncias tive de aprender a viver no Brasil com todas as suas diferenças e desafios. E de mocinha tímida tornei-me mulher forte.